segunda-feira, 30 de julho de 2012

Depois que ela se foi



            Depois que ela se foi, tudo se foi com ela. Somente restou esse silêncio abissal. Nenhuma música de rock. Sequer uma balada. Nem passadas rápidas, correndo para cá e para lá. A cama vazia atesta a ausência. A mesa sem os cadernos espalhados, sem o molho de chaves, Nenhum tênis jogado no chão do quarto.

            O suave perfume da juventude se desprendeu dos lençóis. E o doce aroma dos cabelos não mais flutua no ar. A delicada figura não corre, não ri, não pula mais no corredor. Não dança e não caminha pela sala. Sem ela, a casa é inodora, insípida e incolor. Mas não é indolor. Dói a solidão dos objetos antes por ela tocados. A vida ausente. Sem revoluções.

            O telefone está mudo desde então. Sumiram as amiguinhas com suas risadas, os compromissos. O som de passadas nos saltos das botas de verniz. Todo aquele exército de amigas e inimigas. O repertório das brincadeiras. Ficou esse tempo pós-tudo e era preciso aprender a voar com as próprias asas. Quem não sabe? As circunstâncias são outras.

            Depois que ela se foi, os seus olhos claros e oblíquos me fitam das fotografias espalhadas pela casa. O sorriso cristalizado nos dentes perfeitos. Simulacros da meiga presença. Presente mesmo só o gatinho, de olhinhos também simétricos. E obliquamente felinos. Obliquidades semelhantes. Ternas e adocicadas.

            As roupas rejeitadas e esquecidas no guarda-roupa já começam a ganhar aquele denso cheiro de mofo. Na estante, livros repousam desalinhados e distraídos. Entretanto, a atmosfera do quarto segue alegre. O palhaçinho sorridente continua pendurado no trapézio. Os enfeites da Índia, as almofadas chinesas, o quadrinho de mangá: tudo no lugar. E a caixinha de música abriga e protege a eterna canção.

            Depois que ela se foi, todas as bonecas e os vestidinhos foram cuidados. Estão comoventes de tão lindas! E guardadas zelosamente nas caixas. Uma espécie de carinho secreto. Gestos estranhos acontecem nesse vazio. Como seria a conversa com novas meninas em flor? Não existe uma receita. O momento passa e elas seguem risonhas e descontraídas pelas ruas. Tudo continua. É bom que seja assim.

            Estranhamente, algo que partiu resolveu voltar. As palavras eram minhas jóias. Mas há anos atrás, soberanas e ciumentas impuseram a sua exclusividade. A Arte não divide afetos. E levou consigo o seu séquito avalassador.

            Ressurgiram assim: só depois que ela se foi.